Reproducimos o texto da companheira Mari Fidalgo publicado no Novas da Galiza de setembro baixo o título Renda Básica das iguais: auto-defesa e construçao de comunidade:
“A quem nasce para martelo, do céu caem-lhe os pregos”, costuma setenciar uma amiga quando se depara com a injustiça endêmica. Ou melhor, quando a estigmatizaçao oculta problemas estruturais que levam as pessoas a situaçoes recorrentes de desproteçao e violência.
Vidas sequestradas
Amanda é uma mulher migrante, drogodependente, que emprega a prostituiçao e outras artimanhas para buscar-se a vida. Malvive nas adjacências de um cêntrico bairro de Compostela. Há uns meses voltou a deparar-se com a violência machista: sofreu uma agressao sexual perpetrada pelo arrendador da vivenda na que morava. Da noite para o dia, ficou sem casa. Já antes encontrava-se sem recursos, à espera de uma vaga num centro de desintoxicaçao que até hoje nao chegou. Também ficou sem medidas de proteçao, porque em nenhum momento tratou-se o seu caso como uma agressao machista. Apenas estableceu-se uma ordem de afastamento que obviamente está a ser incumprida pelo agressor.
Dentro do que cabe Amanda teve sorte, porque atopou-se com a sororidade feminista, encarnada nas vizinhas que levam dois meses acompanhando-a na peregrinaçao por diferentes recursos municipais sem obter praticamente nenhuma resposta efetiva. Ser mulher, pobre, toxicômana, migrante e prostituta (ou seja, lixo social) sao circunstâncias suficientes para que a espiral da exclusao siga continuamente dando voltas, obrigando as pessoas a andar de um despacho a outro, espindo as suas vidas. Submetendo-as ao grande olho dos Serviços Sociais.
Paralelamente a maquinária repressiva atúa ditando os seus axiomas: algo faria para que lhe passasse o que lhe passou. Nao se mostra como uma mulher recatada, emprega o seu corpo como meio de vida. Desmarca-se da lógica disciplinadora de “pobre, porém decente”. Segundo a ordem patriarcal é suspeita e merecedora de receber violência.
Esta mulher tem a sorte de pelo menos estar acompanhada perante o escrutínio, os preconceitos e o controle institucional. Mas lógicamente isso nao é suficiente. Amanda tem a sua vida sequestrada por un sistema que funciona à base de empurrar a milhares de pessoas ao empobrecimento e à exclusao. E logo subjugá-las em troca de migalhas que chegam a destempo, como a RISGA ou as prestaçoes municipais que seguem a lógica da constraprestaçao e da chantagem do emprego.
Uma ferramenta para a auto-defesa
Para dotar-nos de uma ferramenta que nos ajude a frear o sequestro das nossas vidas defendemos a proposta da Renda Básica das Iguais (Rbis). E o fazemos nao desde qualquer atalaia teórica, senao desde o lugar de quem poe o corpo dia a dia na luta pelos direitos sociais.
Concebemos a Rbis como um instrumento para proporcionar-nos os recursos básicos para manter e reproduzir a vida, partindo da realidade de que vivemos numa sociedade de mercado na que (ainda) precisamos euros para satisfazer muitas das nossas necessidades. Pessoas como Amanda, com tal nível de deterioro orgânico e psicosocial, requerem de tempo para cuidar-se, re-construir a sua trama vincular e aprender outras formas de estar. Também precisam de tempo e condiçoes ajeitadas para poder chegar a produzir alimentos e energia ou para construir-se uma biovivenda. Enquanto o processo de empoderamento e aprendizagem avança ao seu ritmo (ou acaso as pessoas listas e militantes transitamos rápido e sem recaídas por esses caminhos?) a emergêcia social nao pode esperar. Criar comunidade tampouco.
Estamos a falar de um instrumento que nos possibilite tecer relaçoes humanas e recuperar o tecido social perdido, rachando com o isolamento, a culpabilizaçao das empobrecidas e a competitividade por empregos cada vez mais escassos e precários. De uma reivindicaçao para tensar a corda e ir superando a miséria da RISGA, incrementando quantias, eliminando contraprestaçoes e controles. E dessa forma ir avançando em direçao a um marco de autênticos direitos sociais, invés de seguir mareando-nos com prestaçoes, ajudas e direitos subjetivos.
Sempre assumindo uma perspectiva de processo de soma de vontades que inclúa quem está a levar a pior parte nesta etapa do capistalismo patriarcal. E nao estamos a falar de povos e países distantes (que também), mas desse 25% da populaçao galega em risco de pobreza. De vizinhas que nao fazem mais que dar voltas na roda da exclusao com o conseguinte deterioro das suas condiçoes de vida e saúde.
RBis para criar comunidade
En definitiva, entendemo-la como um instrumento de apoio para impulsar processos e vida comunitária. Defendemos que uma parte do ingresso estabelecido para cada pessoa seja destinado a um fundo comúm a ser gerido pelos bairros, aldeias ou vilas cujas habitantes decidiriam o seu uso e repartiçao em funçao da suas necessidades e particularidades. E dessa forma posibilitar um processo de aprendizagem de novos valores e práticas. Entretanto, ir questionando e desmantelando setores insustentáveis e socialmente inúteis, mudando o rumo do crescimento econômico que nos está levando ao colapso. Desmonetarizando paulatinamente a economia e as relaçoes sociais com o horizonte posto na riqueza comunal e noutras formas de organizaçao. Para todas, tudo. Bens comúns, cuidados, afetos, prazeres, cultura, participaçao.
Desbordar o sistema desde o cotidiano
Nesse caminho nao sobra nenhuma ferramenta ou formulaçao que ataque as bases de sustentaçao sistêmicas. Pugnar pela mais radical é para nós um signo de uma cultura política patriarcal que precisamos desterrar. A complementariedade, a soma de esforços e o diálogo sao a chave para avançarmos politicamente num cenário de tamanha complexidade como o atual. Ninguém tem a proposta definitiva, em qualquer caso podemos ter propostas afinadas geradas desde o paradigma segundo o qual analisamos a realidade. A soberania alimentar, o decrecimento, a luta antirepressiva que deu lugar à reivindicaçao da anistia social sao algumas das propostas que levamos tempo a fiar com a Rbis, num movimento de enriquecimento mútuo.
Reclamamos que a realidade das habitantes dos espaços de nao vida, que as vidas estigmatizadas, invisibilizadas e sequestradas sejam tidas em conta. Criar alianças, tecer vínculos, pôr o corpo. Urge contagiar outras pessoas das nossas formas de entender e estar na vida desde uma posiçao de humildade e construçao coletiva, no canto de fazer política para o autoconsumo.
Para nós, propostas com genuína vocaçao antipatriarcal e anticapitalista, encaminhadas a sustentar a vida desde o trabalho (e nao emprego), as relaçoes humanas, a comunidade e o apoio mútuo, nao sobram, nem competem entre si.
Mari Fidalgo participa en Baladre, un espaço de coordenaçao de lutas contra a precariedade, o empobrecimento e a exclusao social
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Fonte: Novas da Galiza